Para ti

ajuda-me a suportar o peso destes dias em que a lama se mistura com a luz, e deixa-me ver no escuro como as laranjas crescem nas àrvores do meu coração mesmo quando o silêncio se transforma em desertos, para que todos os meus desertos sejam o caminho que te procura, e dá-me a tua mão para nela pôr a minha alma enquanto caminhamos.
desce sobre mim a tua luz, a tua àgua, a tua chuva, ajuda-me a ser o teu destino, a tua única verdade, pois tu és a minha explicação.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

nos poemas
encontrei as tuas asas
para este pássaro
de mim

oh diz que ainda me queres
quando adormeço
sem asas

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

o modo como durante um ano inteiro
pisámos as flores e os amigos
incendiámos as casas e roubámos os pássaros

e depois num dia apenas
limpamos os quartos e os armários
e nos tornamos igualitários e bons

é-me sempre motivo de espanto

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007


eu não sou digno da tua palavra
nem da chuva destes dias
de inverno tardio

e o que sinto
é sempre uma pequena parte
do que me dás

ou talvez seja eu que não entenda
quase nada
e a minha vida seja
afinal

o longo caminho do não saber

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

pequena prece para os amigos


Senhor

dá-nos mais instantes como estes
árvores seguras para os pássaros
instantes felizes para os homens

uma visão clara do mundo
e um pensamento nobre
uma mão contente nos amigos
e outra nas aves que passam.

e assim sejamos no caminho certo

Senhor

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

eis o que me aflige
o lento devagar das árvores
e tudo o que dentro delas

acontece

domingo, 11 de novembro de 2007

todos os dias regresso a nossa casa.
por lá vejo tudo o que permanece

as linhas dos meus dedos
minúsculos rastos
da pele das minhas mãos e pés

a minha sombra sempre triste
por entre os livros
por entre os móveis
angustiada na cama
e sob o chuveiro dos infortúnios.

e vejo a tua sombra que me segue
sem me entender
as tábuas que se quebram com os anos
os amigos chegando a tardias horas da noite
as cartas que persistem em procurar-me.

e eu que todas as coisas guardo
no sítio onde estão

sou afinal o único que já partiu

sábado, 3 de novembro de 2007

leva-me contigo pássaro
da manhã

para lá de tudo o que dói e cansa
pelas frestas do sol
até às janelas do mundo

sem peso nem mágoa
leve e sossegado
na aragem das tuas asas

incauto e puro como os teus olhos

até que todas as portas
abertas sejam

no meu coração

sábado, 20 de outubro de 2007

já nada me contenta.

flutuo agora entre as asas e o abismo
dos meus poemas
levado por palhas e desejos

ah se ao menos o meu corpo fosse
a tua casa
e nela abrisses as janelas
e depois me acenasses
como as crianças fazem quando é noite
e adormecem

mas as minhas mãos são navios
que nunca se contentam

domingo, 14 de outubro de 2007

outra pequena oração

o dia em te encontrei
era outono nas folhas e nas árvores

e eu fiquei quieto na tua luz
enquanto as sombras se juntavam
nas asas dos pássaros

e depois uma coisa feliz desceu sobre
a minha sombra e a tua

que eram talvez mais que duas

e agora são apenas uma

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

pergunta por mim naqueles dias

naquelas tardes de luz
em que nada envelhece
ou então serão os olhos sem pressa

as tangerinas
e as sombras que fazemos ao passar

ou apenas o leve torpor da geada
nas escondidas casas

quando anoitece

terça-feira, 9 de outubro de 2007

ficaram rosas


para que a minha vida fosse melhor
pedi um pouco da tua luz
um pequeno gesto pousado

e deixei-me cair no teu coração
sem braços sem corpo sem nada
apenas a minha alma

e depois deitei-me a teu lado
como fazem os pássaros
quando morrem.

e ficaram rosas

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

agora sabes quem sou

eu sou a voz que reclama
tudo o que te pertence

corpo espírito alma
coração e pele
o ar que respiras
os teus pequenos gestos pela manhã
a noite e o chão que pisas

e reclama sem peso medida
força ou grades

e ainda assim te reclama tudo o que tens
e te deixará sem nada
pobre e despida no mundo

pois reclamo também a luz do teu olhar
o teu cabelo desarrumado
os passos que deixaste na areia
enquanto caminhavas a meu lado

e vida por vida te garanto
que não haverá trocas nem cedências:

agora já sabes quem sou

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

pequena oração

se encontrares este poema
guarda-o

ele é a flor que abriu
uma mão fechada na semente

o que era água e luz
pela fresta entrou

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

se houvesse escolha

se houvesse escolha
para as crianças que morreram este verão
à beira dos rios e dos pássaros calmos

e se houvesse escolha
para as sombras que nos seguem

e para as coisas que se quebram

e para as árvores em novembro
com as suas cores desbotadas

e porque não há escolha no tomilho
nem se escolhe ser melro
ou um dia por acaso

nem as estações escolhem
os seus desígnios

ou se houvesse escolha
nas portas e janelas do mundo

por onde entrar sair ficar

terça-feira, 10 de abril de 2007

todos queremos ter
dentro de nós
uma coisa que nos proteja

uma rosa virada para o mar
um retrato velho sobre a cómoda

uma palavra antiga
onde tudo caiba

e a isto chamarmos
Deus

domingo, 11 de março de 2007

estas são as coisas que te disse

todas elas já arrumadas nas sombras
ou dentro de livros embaciados
outras caídas em manchas de roupas
que não têm uso

enquanto as folhas das árvores
percorrem o seu caminho até ao chão.

e tu vês a minha mão
e como os vidros
reflectem as minhas feridas

agora que as casas são imagens
e as pedras cumprem o que lhes foi dado.

chega aqui: no teu ouvido

nunca envelheci

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

a rosa

durante anos
envelhecemos desalmadamente.
fizemos o possível
para que tempo frio e terra
sobre nós viessem em derrocadas

tínhamos pressa
e a cada dia acrescentámos
correrias e becos sem saída.

nem todos chegámos aqui

houve quem na pressa
tenha tropeçado numa coisa estranha
alguns desistiram
alguns quiseram ser como as árvores

outros como eu

cedo demais souberam
o nome da rosa

sábado, 24 de fevereiro de 2007

naqueles dias frios
em que nada se move no mundo

só uma chuva muito fina
a esconder as ruas
e estas mãos tão próximas

porque acredito em ti
e nas árvores

e encontro os teus passos
onde o meu coração dorme

porque tudo no mundo
me fala de ti

e então acredito
que por alguma coisa grande
estamos aqui

sábado, 17 de fevereiro de 2007

a morte é tão natural
e as flores nas janelas
falam de nós

asas de pássaros

domingo, 11 de fevereiro de 2007

ao antónio bernardo

soube que mudaste de rua
e desde então tudo mudou neste lado

as árvores e as plantas estão a florir
outra vez
os animais descansam nas sombras
os homens fingem existir
as mulheres abraçam os filhos
num sono desigual.

e em tudo isto existe
uma espécie de alegria

sábado, 3 de fevereiro de 2007

quando fizeste o mundo
acreditei que estarias nele para sempre

o teu ar pesado
muito cedo envelhecido
enquanto as rosas cresciam

e o modo como sem saberes
me aprendeste
que a nossa vida não é daqui

e como a dor é uma coisa natural
em cujos nomes esquecemos casas e desertos

e nos sentamos um dia à espera
esperando sempre que nunca aconteça mal
a quem amamos

apesar de sabermos todos
que nada fica neste lado
senão a doce alegria de termos um dia sido
um milagre uma voz

uma vida
que ninguém podia fazer por nós

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

para a minha filha Ana
em viagem-aventura pela América Central


eles não acreditam em anjos
mas tenho um na mão que te escreve
deste lado do rio

segurando o teu olhar
para que nunca se perca

para que nunca siga inclinado
fora do caminho que te segue

seguindo o caminho do lobo
lado a lado
com o caminho da formiga

inclinando a cabeça ombros e coração
para que no sono nunca te aconteça nada
e nunca nada te perca

domingo, 21 de janeiro de 2007

a vida aconteceu depressa

as mulheres acenavam às janelas
as crianças brincavam lá fora
os homens subiam e desciam

as árvores os pássaros os rios

eram estátuas
que a tudo assistiam

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

até que eles partam todos

os seus crimes com espinhos
e rosas de sangue

que partam todos
com as suas vozes negras

negras nas fogueiras e nas cinzas
como olhos mortos e sem destino

e os gritos afiados na alma
as botas cheias de lama
e para a lama tornem todos

pois as feridas tinham botas
as fardas tinham botões e lágrimas.

que partam agora todos
e nunca mais voltem

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

(sobre os governantes)

e livrai-nos
daquelas sombras sem alma
que só nos querem fazer mal

e de vez em quando descem
nas nossas casas
ficam ao nosso lado

e silenciosamente escuros

tanto nos atormentam

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

repara como é estranho
tudo o que acontece no mundo

as grandes dores que atravessam a vida
e tudo o que está lá dentro

acreditar no futuro mesmo quando

e mesmo assim erguer ambas as mãos
pés corpo e alma e atravessar os rios

até que um milagre aconteça

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

quis ser
uma pequena ponta da tua luz
um fugaz reflexo
do brilho quando passas
em lentos barcos pelo mar
e te afastas

e depois descer com as tuas mãos
quando as minhas te procuram

e quis ser longe nas asas dos pássaros
chamando por ti nos olhos dos animais
evocando antigos sinais e gestos

talvez ser uma porta entreaberta
onde tu estivesses sempre

e quis
sem saber que já era em ti

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

o amor é uma grande dor
que há no mundo

e vem das árvores e do outono
cresce entre os espinhos e as rosas
com pássaros fome gestos

e é uma dor muito grande
uma cadeira um banco
um dia

tanta coisa cabe nesta dor

até mesmo a alegria

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

como se alguém te contemplasse

para além da tua rua
do teu país do teu mundo

e dentro de cada gesto
e em cada rosa te falasse

porque desde o primeiro instante
os teus olhos e a tua língua

o dissessem