na minha vida houve livros de muito género. alguns encheram-me de detritos, sujaram-me. outros eram generosos e fizeram assomar em mim virtudes que talvez nunca tenha tido. fizeram com que olhasse o mundo com vontade de me tornar melhor. alguns livros roubaram-me alguma coisa que nunca pude definir exactamente. à maioria, no entanto, fui eu que roubei alguma coisa.
ao final de muitos anos, muitos livros lidos, comecei a interessar-me apenas por livros que me esvaziassem de tudo o que os outros tinham deixado em mim. livros que tivessem o mar lá dentro. não que falassem de mar, mas que fossem o próprio mar. é que já não me interessam livros que falem da vida, mas somente livros que sejam a própria vida. quem diz vida, pode dizer morte, amor, compaixão. o caminho do bem.
dou comigo a interessar-me em me desinteressar dos livros em geral, e a culpa não é dos livros nem dos respectivos autores. a culpa é minha que aprendi a olhar numa janela os livros todos do mundo, e quando chove, nem preciso mover-me, pois a chuva contém os telhados, as plantas e os charcos, e assim descalço vou através das noites molhadas, que são as páginas dos livros. desinteressei-me pelos livros de poemas e pelas multidões de poetas. não é sua culpa: da minha janela vê-se quase tudo.
há tanta coisa que gostaria de dizer antes de partir, mas ficou tudo dito no dia em que a minha mãe trouxe jesus misturado com a fruta e depois o colocou, muito crucificado, por cima da minha cama. e então a mãe disse “este é jesus que morreu por todos nós e assim é o meu amor por ti.” e é tanto o peso destas palavras, que ainda hoje caminho de joelhos.
e ainda hoje me farto de dar voltas à cabeça a tentar encontrar essa noite. tento escrever sobre ela. mas é como se todas as páginas tivessem sido escritas e lidas nessa noite. agora olho para trás e compreendo que nenhuma mão pode alcançar aquela noite. por isso salto, repetidamente, pela janela e atravesso o ar que divide o mundo em coisas de baixo e de cima, e também nas que estão ao lado umas das outras, e tento limpar de mim o que me deram, e sopro numa cana, como se fosse uma criança, para que nunca se acabem as amoras, para que nunca se acabem as imagens e as palavras, e no final de tudo eu possa estar cheio de nada, porque é assim, também, que todos os livros deviam ser. é assim que a vida devia ser.
outrora busquei em livros um entendimento que pudesse haver para tudo o que me cerca, e para tudo o que se afasta de mim e chamo longe. acompanhei-me de livros, como se fossem segredos ou contivessem saberes mágicos sobre a máquina do mundo. acreditei em livros escritos por mestres e outros que continham informações e conhecimentos sobre o destino e o sentido da vida e da morte. compreendo-os e respeito-os, mas agora caminho lado a lado com a desnecessidade e a desimportância. não obstante, sempre que encontro um livro novo, esvazio-me de tudo, dou a mão a quem lá está e digo muito baixinho: estou de regresso irmão. e seguimos de mão dada para a cruz mais alta que houver no mundo: buscamos o perdão.
chegado aqui julgo compreender que todos somos mensageiros de alguma coisa. o mundo é a fingir, é certo. o que não é a fingir é a mensagem que cada um traz e que devia tentar ler, compreender. do meu convívio com aquilo que outros chamam metáforas, e que eu acho que é a vida como merece ser vivida, compreendi que a chuva fala comigo nos poemas. chover é falar com o universo. pedir perdão é subir ao lugar mais alto do regresso a casa.
muitos poetas escrevem por motivos que são os seus. eu pertenço a uma linhagem antiga, que é aquela dos poetas que buscam o perdão. eu sei que algures na minha vida matei alguém. ignoro como o fiz. pode ter sido por acções, palavras ou pensamentos, e embora não o veja sinto-o. os meus poemas, repetidamente, pedem-lhe perdão, e pedem-lhe que regresse connosco a casa.
esta noite acordei com um bater de asas lá fora
os anjos não têm asas
mas o meu coração tem duas asas
poema
as minhas avós e a minha tia-avó/
viveram num tempo que tudo lhes pediu//
e às vezes tinham dias/
mas era à noite/
que tudo se repetia//
como se fosse uma sorte/
uma vingança uma maldição/
ou então uma espécie/
de coisa muito/
forte/
que acontecia