297

 

o tempo vem

com as rosas

 

encontrei-o

a cantar

na rua

 

veio a chuva

chegou a noite

 

e o grilo voltou

a cantar na

eira

 

302

 

já me disseram

que longe não tem

plural

 

mas é que

nos meus poemas

tudo é prodígio

 

e cada coisa

é múltipla de si

 

e assim longes

é o plural de longe

 

como infinito

é singular de infinitos

 

é o que te digo

 

nos meus poemas

nascem

 

prodigiosos

impossíveis

 

302

 

bem-aventurados
os pobres de espírito

 

os que não olham

e olhando não

vêem

 

os que sentem

e sentindo

ignoram

 

os fáceis

os resumidos

 

os cultos

e os presumidos

 

eles nunca verão
a Deus

 

e nós também

 

desde que a literatura se tornou cúmplice

 

desde que somos poucos

os que resistem

à estória do lobo

e da raposa

 

à invasão da europa

por frankenstein e custer

 

desde que a poesia

se tornou literária e afins

 

a linguagem do não sei quê

com metáforas em vez

de gente

 

colaboracionista de um mundo

sem sentido outro que não seja

o do mercado

 

thackeray anunciou

eliot avisou e carroll adivinhou

 

mas os poetas tornaram-se

cultos e cegos

 

a feira o negócio

a síndroma da branca de neve

 

a maçã podre das igrejas

a conivência com o mundo a fingir

 

e agora ficou ninguém

 

olá ninguém

 

e então

perguntaram-me

que parede é esta

que há nos meus poemas

 

e eu disse

 

é uma parede pintada

com cal branca

 

há quem faça casas

sobre o chão

 

eu fiz a minha casa

numa parede de cal branca

 

depois

pintei-lhe uma cruz

 

espero ser perdoado

 

crucifica-me

no teu coração

 

arrasta-me

por todas as ruas

onde não estejas

 

julga-me diante de todos

os que não sabem

que te amo

 

anseio e procuro-te

 

procuro-te

no meu sacrifício

que não conhece

outra forma de amar-te

 

o mundo fala-me de ti

sem metáforas

 

149

 

quando estamos

vivos pousamos

as mãos sobre

as coisas

 

e parece-nos

que as trazemos

nas mãos

 

mas não

 

nada nos pertence

e tudo o que somos

 

é nelas

 

243

 

conheço uma foto

em que já não estamos

 

ninguém se despediu

 

quis deixar-te

a minha mão direita

 

a esquerda não deixou

 

e agora sei

que ninguém resiste

 

a esta fome

 

mãe

 

de que é

feito o mundo

 

que luz é esta

que não traz sombra

 

a mesma que

te deixou parada

 

num retrato

 

293

 

num lugar muito longe

daqui

 

chove

 

alguém se inclina

sobre a água

 

talvez tenha asas

 

talvez tenha uma estrela

em vez de coração

 

imagino que tenha

ao menos uma mão

e nela guarde

 

aberta ou não

 

um desenho uma lua

um sol

 

293

 

disseram-me

que a água é h2o

 

mas isso é o que

a água parece ser

 

dentro das coisas

é que elas

são