terça-feira, 29 de julho de 2025

 


285

 

o jardineiro amava

maria

 

os dois à vez

davam beijos e dormiam

 

às vezes perdiam-se

nas mãos

 

ou então

no coração

 

todos lhe chamavam

madalena

 

ele só a tratava

por maria

 

e por onde quer

que fossem

 

na vida e na morte

 

ele foi sempre

o jardineiro de maria

domingo, 27 de julho de 2025

 


54

 

antigamente

quando te chamava

mãe

 

não fazia ideia do

peso do teu

nome

 

agora

compreendo que

tudo não passou de

uma perda

para lá do fim da

tarde

 

que cada um

cai

 

na sua vez

quinta-feira, 24 de julho de 2025

 


em breve virá o

outono

 

os pássaros já

voam em sua direcção

 

as plantas e os

insectos estremecem

na sua música

 

move-se a água

aqui na terra e

no céu

 

infinita a luz que

tudo move

 


64

 

há quem julgue que sou um fervoroso crente. desses que acreditam na existência de Deus, e que este terá sido o criador disto tudo. mas a minha crença é na poesia, que foi ela a criar o mundo e, claro, Deus. por outras palavras, no que acredito mesmo é na ausência de Deus, e que este nada mais criou que a sua infinita falta. de qualquer modo, existe a fábrica do tudo, mas hoje não vou falar dela

quarta-feira, 23 de julho de 2025

 


senhor

 

tu nunca escreveste

por linhas tortas

 

nunca passaste por nós

como se evitasses a chuva

 

nem paraste à noite

entre duas paredes

sem sombra

 

não prometeste

um mar de rosas

 


senhor


agradeço todas as promessas
de uma vida e um lugar
num tempo que não entendo

mas deixa-me só ficar
entre tudo o que amei

e assim morrendo sem grandeza
e parte do nada
de tudo aquilo que não segue
para lado algum

não durar depois da chuva
nem das crianças

não ter mais caminhos
nem chegadas

abrir nas mãos tudo
o que foge e não consigo

e todavia estar aqui
enquanto dure este lado
tão distante

e que tão
distante não alcanço

e que não haja flor
depois da flor

e seja na árvore
a sombra de mim
em tudo o que não fica

deixa
que esta vida
acabe em mim

(in "a noite que nenhuma mão alcança", 2018)

 


a minha avó dava-me romãs

e eu tinha uma árvore no coração

 

eles tinham portas e cancelas

eu tinha uma árvore no coração

 

eles tinham domingos na missa

e eu uma árvore no coração

 

eles foram pela vida e cresceram

eu uma árvore no coração

 

eles ergueram casas paredes nas casas

paredes nas estradas paredes nos quintais

paredes entre eles e os outros

arranjaram empregos e foram trabalhar para fora

 

eu cresci uma árvore no coração

 

eles visitam-me uma ou duas vezes às vezes

e encontram sempre uma árvore

no meu coração

 

porque a avó dava-me romãs

e a romãzeira estava no meu coração

sexta-feira, 11 de julho de 2025

 


309

 

cada vez que um de nós

morre

 

dançamos

 

dançamos sobre

a mesa

 

a festa acaba

acabam os foguetes

 

os convivas des

pedem-se

 

a vida desmorona-se

como numa canção

desafinada

 

e então

lembram-se os retratos

e as palavras do costume

 

pêsames dor e falta

 

e dançamos

sobre a mesa

terça-feira, 8 de julho de 2025

 


315

 

por cada vida

que nunca foi

a nossa

 

embora

por nós sofrida

 

ouvi-nos senhor

 

a mão aberta

o coração rôto

por quem nos chamou

e por quem nos disse

 

ouvi-nos senhor

 

e que ainda

não seja tarde

nem agora ou nunca

 

em que as crianças brincam

nas sombras do verão

 

ouvi-as senhor

segunda-feira, 7 de julho de 2025

 


312

 

ouvi a nós senhor

 

que nada queremos

do teu poder mais

que muito

 

desviados somos

das palavras e gestos

que dizem ser os teus

 

pecadores

com uns e outros

que somos nós

 

e nunca com as tuas coisas

que não tens

 

tu não existes

tu não existes

 

e se tu não existes

 

não é

por nossa culpa

 

que nós somos pobres

e apenas pobres

 

de uma pobreza

que ainda não tem nome