aquele que bate

à tua porta

 

não é um estranho

 

não vem de longe

ou perto

 

e a língua que fala

é a tua

 

recebe-o

 

ele és tu

multiplicado

 

encontrei jesus

 

estava a chorar

 

peguei numa lágrima

para analisar

 

de sal ou água

nenhum indício

nem coisa tal

 

só uma grande

mágoa

 

114

 

atravessei um

pássaro para aqui

chegar

 

vesti-me no seu

nome

 

não matei ninguém

e morro antes

de poder cantar

 

azul sobre a

mesa

 

123

 

as palavras

criam tudo

 

até a ausência

 

e depois tu

perguntas

 

e Deus

 

Deus é

a ausência in

finita

 

266                    (o caminho do cego)

 

agradeço-te tudo

quanto não podes

dar-me

 

o pão de cada dia

o sol e a chuva

 

e às vezes

o muito vento

 

agradeço-te

a pobreza em que

alguns de nós ficaram

 

desde que te foste

 

o pão de cada dia

o sol e a chuva

 

e às vezes

o muito vento

 

por vezes cantamos

num excesso de alegria

sem nome

 

mas a isso eu chamo

pobreza

 

o caminho do cego

 

63

 

sentei-me com

uma formiga

 

perto das nuvens

perto da lua

 

e Deus veio e

disse

 

pronunciai

me

 

45

 

tudo o que nos

pedem que sejamos

 

é vencedores

 

e eu admiro os

perdedores

 

os gestos das suas

mãos quando caiem

e se juntam à erva-doce

 

e assim em

cada homem busco

a derrota

 

o pássaro que

não voou

 

ajoelho-me à sua

beira

 

265

 

perguntaram-lhe

 

que árvore mais alta

é essa de onde se vê

o mundo

 

e ele disse

 

ele disse

que há tantas árvores

quantas as virtudes

 

e então

falou de gratidão

 

264

 

ilumina-me

palavra de todos

os dias

 

pois sem ti nada é

o que merece ser

e eles não sabem

que nenhuma matéria

se faz sem ti

 

eles ignoram

que és

 

o que nenhuma

boca sabe

 

261

 

iluminou-se o dia

 

os pássaros vieram ver

 

a rã deslizou na água

 

um gato sentou-se

muito inclinado

numa sombra

 

e uma flor abriu-se

nas janelas

 

então

um homem abriu

os braços

 

e cegou

 

359

 

duas crianças param

a ver o mundo

 

abriram as mãos

e soltaram bolas de sabão

 

sem asas e sem nuvens

subiram até ao céu

 

um pássaro atravessou o rio

no lado de fora

dos peixes

 

ao longe

um homem caminhou

cego até ao frio

e depois voou

 

ficaram todos

no retrato

 

310

 

disseram

que me rendesse

 

e eu rezei

 

disseram

que era muito tarde

 

e eu cantei

 

disseram

dado o meu estado

de idade

 

deveria

entregar-me a Deus

 

fui falar com o gato

 

358

 

alguém muito pobre

bateu á minha

porta

 

e eras tu

 

se hoje fores a

minha mão

 

a mão que dá

 

357

 

aquele que

regressou

a casa

 

o dos pássaros

 

o despojado

entre as flores

 

ele chovia

ele cantava

 

ele tinha

uma coisa

que não se via

 

161

 

desenho um sorriso

e colo-o na tua

boca

 

tu sorris

 

depois desenho

orelhas nariz

olhos

 

e tu cantas

 

agora faço um

coração nos

desenhos

todos

 

e é o mundo

 

5

 

a gente chega sempre

tarde

 

onde quer que seja

 

alguma coisa

 

alguma coisa muito forte

nos tombou pelas

costas

 

transforma-se quem vê

na coisa vista

 

319

 

às vezes

olho para ti

 

e penso

que te conheço

de muitos lugares

 

e a gente caminha

então de mão dada

 

como se fossemos

apenas um

 

ou talvez nenhum

 

354

 

como se hoje fosse

sábado

 

sentei-me à janela

 

lá fora chove

e tu cantas

 

tu cantas

por toda a casa

 

nunca te vejo partir

e nunca te vejo chegar

 

só te ouço cantar

por toda a casa

quando as flores vierem

espero que me encontres

no caminho

do bem

ó pássaro de papel

atravessa o meu abismo

ilumina a minha casa

faz de mim um retrato

onde nunca haja

escuridão

 

352

 

avisem-me quando

chegar a primavera

 

avisem os pássaros

 

nas flores e na eira

florescem crianças

e margaridas

 

o verão não tarda

 

já ouço

o rumorejar das abelhas

 

347

 

quando uma flor

floriu na sua t-shirt

 

as pessoas vieram ver

 

não é suposto

não é real uma flor

abrir-se numa t-shirt

e virar-se para o sol

 

e então as cores

vinham do céu

 

ou talvez fosse

dos pássaros

 

olá primavera

 

348

 

malditos sejam aqueles

que roubam aos outros

 

para deitar fora

 

e crescem na miséria

da porta ao lado

 

sem dó

ou misericórdia

 

prosperam no mal

do próximo

 

346

 

como o mundo está

errado

 

desenhei-o

numa folha a4

 

depois desenhei uma caravela

e um cordel de atar coisas

 

atei-lhe o mundo errado

como quem ata

um recado

 

se amanhã

voltar a chover

 

se amanhã

formos melhores

 

se amanhã

for este o caminho