sábado, 23 de agosto de 2025

 


331

 

jesus virou-se

para os homens

e disse

 

é verão

vamos todos à praia

 

à vinda da praia

é que foi crucificado

num lugar

 

onde nunca mais

foi visto

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

 


328

 

para escrever

um poema

 

primeiro escuto

como se alguém

falasse

 

nem sempre é fácil

 

à vezes

a voz só fala

e não quer que escreva

 

reformulo

 

primeiro escuto

se alguém fala comigo

 

depois faço

como os gatos

 

e deixo que chova

domingo, 10 de agosto de 2025

 


53

 

há quem reze muito

 

e julgue que Deus

é um contabilista

a contar elogios

 

e lugares à mesa

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

 


322

 

tu és

o meu próximo

 

aquele que aceito

na sombra da árvore

 

tu és

a minha ausência

e a falta do que

tenho

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

 


senhor

 

multiplica-me

por todas as tuas

pedras

 

cresce em mim o dom

daqueles que caminham

descalços

 

empobrece-me

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

 


não me obrigues

a cantar

que ainda agora

aqui cheguei

 

e não desejo beber

nem dançar

 

houve uma festa

mas não era a minha

 

não me obrigues

a cantar

que não desejo beber

nem dançar

 

há muito

que caminho de joelhos

já te disse

 

e fugi de todos

os retratos

 

não me obrigues

a cantar

 

só vim rezar

 


o amor

mesmo quando não arde

 

é coisa de se ver

 

porque incendeia

aqui

 

incendeia ali

 

escondido do olhar

 

se fosse um fogo

haveria de queimar

tudo em seu redor

 

assim

arde e consome

longe do olhar

 

e de qualquer

entendimento

domingo, 3 de agosto de 2025

 


o meu irmão

que morreu há tanto

 

e então

pergunto-lhe

 

como pode ser

que só agora te veja

 

tão cego o coração

que só agora

te vi

 

e te pergunto

 

o que fazes

nos meus poemas

 

que fazes aqui

espinosa

terça-feira, 29 de julho de 2025

 


285

 

o jardineiro amava

maria

 

os dois à vez

davam beijos e dormiam

 

às vezes perdiam-se

nas mãos

 

ou então

no coração

 

todos lhe chamavam

madalena

 

ele só a tratava

por maria

 

e por onde quer

que fossem

 

na vida e na morte

 

ele foi sempre

o jardineiro de maria

domingo, 27 de julho de 2025

 


54

 

antigamente

quando te chamava

mãe

 

não fazia ideia do

peso do teu

nome

 

agora

compreendo que

tudo não passou de

uma perda

para lá do fim da

tarde

 

que cada um

cai

 

na sua vez

quinta-feira, 24 de julho de 2025

 


em breve virá o

outono

 

os pássaros já

voam em sua direcção

 

as plantas e os

insectos estremecem

na sua música

 

move-se a água

aqui na terra e

no céu

 

infinita a luz que

tudo move

 


64

 

há quem julgue que sou um fervoroso crente. desses que acreditam na existência de Deus, e que este terá sido o criador disto tudo. mas a minha crença é na poesia, que foi ela a criar o mundo e, claro, Deus. por outras palavras, no que acredito mesmo é na ausência de Deus, e que este nada mais criou que a sua infinita falta. de qualquer modo, existe a fábrica do tudo, mas hoje não vou falar dela

quarta-feira, 23 de julho de 2025

 


senhor

 

tu nunca escreveste

por linhas tortas

 

nunca passaste por nós

como se evitasses a chuva

 

nem paraste à noite

entre duas paredes

sem sombra

 

não prometeste

um mar de rosas

 


senhor


agradeço todas as promessas
de uma vida e um lugar
num tempo que não entendo

mas deixa-me só ficar
entre tudo o que amei

e assim morrendo sem grandeza
e parte do nada
de tudo aquilo que não segue
para lado algum

não durar depois da chuva
nem das crianças

não ter mais caminhos
nem chegadas

abrir nas mãos tudo
o que foge e não consigo

e todavia estar aqui
enquanto dure este lado
tão distante

e que tão
distante não alcanço

e que não haja flor
depois da flor

e seja na árvore
a sombra de mim
em tudo o que não fica

deixa
que esta vida
acabe em mim

(in "a noite que nenhuma mão alcança", 2018)

 


a minha avó dava-me romãs

e eu tinha uma árvore no coração

 

eles tinham portas e cancelas

eu tinha uma árvore no coração

 

eles tinham domingos na missa

e eu uma árvore no coração

 

eles foram pela vida e cresceram

eu uma árvore no coração

 

eles ergueram casas paredes nas casas

paredes nas estradas paredes nos quintais

paredes entre eles e os outros

arranjaram empregos e foram trabalhar para fora

 

eu cresci uma árvore no coração

 

eles visitam-me uma ou duas vezes às vezes

e encontram sempre uma árvore

no meu coração

 

porque a avó dava-me romãs

e a romãzeira estava no meu coração

sexta-feira, 11 de julho de 2025

 


309

 

cada vez que um de nós

morre

 

dançamos

 

dançamos sobre

a mesa

 

a festa acaba

acabam os foguetes

 

os convivas des

pedem-se

 

a vida desmorona-se

como numa canção

desafinada

 

e então

lembram-se os retratos

e as palavras do costume

 

pêsames dor e falta

 

e dançamos

sobre a mesa

terça-feira, 8 de julho de 2025

 


315

 

por cada vida

que nunca foi

a nossa

 

embora

por nós sofrida

 

ouvi-nos senhor

 

a mão aberta

o coração rôto

por quem nos chamou

e por quem nos disse

 

ouvi-nos senhor

 

e que ainda

não seja tarde

nem agora ou nunca

 

em que as crianças brincam

nas sombras do verão

 

ouvi-as senhor

segunda-feira, 7 de julho de 2025

 


312

 

ouvi a nós senhor

 

que nada queremos

do teu poder mais

que muito

 

desviados somos

das palavras e gestos

que dizem ser os teus

 

pecadores

com uns e outros

que somos nós

 

e nunca com as tuas coisas

que não tens

 

tu não existes

tu não existes

 

e se tu não existes

 

não é

por nossa culpa

 

que nós somos pobres

e apenas pobres

 

de uma pobreza

que ainda não tem nome

domingo, 22 de junho de 2025

 


natal de 1914

primeira grande guerra

região de ypres, bélgica

 

estive numa guerra

que não era dos soldados

 

escrevi uma carta de amor

a um camarada inimigo

 

e ele acenou sorrindo

uma pergunta

 

“como te chamas”

 

sou o teu nome

 

eu disse

eu falei

 

que agora

tudo se conjuga

 

o bem não se dá

com o mal

sábado, 21 de junho de 2025

 


23

 

fui contar os

mortos

 

contei

um por um

e os lugares

onde estavam

 

depois organizei-os

por grupos:

crianças

mulheres

homens

 

e outros

 

alguns

não pareciam mortos

 

outros tinham saído

para ver estrelas

ou apanhar flores

 

os primeiros

estão distantes

 

os segundos

ainda não voltaram

 

um homem

que via tv

agora faz parte

das notícias

 

um homem

que cantava na rua

agora é uma canção

que anda no ar

 

uma mulher

que amamentava a filha

misturou-se com a filha

 

ambas

estão desaparecidas

 

um grupo de pessoas

que passava com pressa

 

compreendeu

que a vida não é

coisa deste mundo

 

tanta gente morta

e tu dizes nada

 

anda

vem cá cantar

no coro desta canção

 

fui contar os mortos