a literatura tornar-se-á, cada vez mais, indiferenciável da “realidade”, isto é, do mundo a fingir. em breve, a distinção entre literatura e essa realidade tornar-se-á irrelevante, indistinta. em grande medida é o que já acontece e daí a dificuldade, frequente, em distingui-las. inevitavelmente, o mesmo está a suceder com a poesia. a inexistência de pessoas capazes de a pensar, tem ajudado a torná-la um produto colaborante do mundo a fingir. académicos, críticos, recensionistas, poetas, juntando todos eles a falta de talento e a falta de uma poética espiritual, muitas vezes disfarçada em discursos cultos ou religiosos, e em falsas cidadanias, todos são colaboracionistas na sua transformação em “produto cultural” de entretenimento.
é preciso ver que a literatura ocupa muita gente. uns financeiramente, outros academicamente, outros permitindo-lhes acesso ao poder, outros ao prestígio. ainda há os que conseguem juntar todas estas as vantagens. é uma invenção que se mantém a si mesma. claro que há muita gente que faz críticas a muitos aspectos desta área (literatura), mas são críticas de dentro, que apenas pretendem melhorar a aparência. não visam transformá-la. ainda não deram conta de que estão diante de um moribundo. e, afinal de contas, para quê? não dão conta de que a humanidade (o que quer que isso seja) precisa de uma ética do bem, e de que esta já nunca virá da literatura (ou da arte, em geral). antes de tudo isso e de tudo o mais terá de haver uma ética da existência, a que terá de corresponder uma poética do bem. se eu fosse um profeta, diria que venho anunciar o fim da literatura e o princípio de uma poesia de ruptura, porque enraizada num ponto cego da existência e numa poética espiritual da existência.
o assunto nunca foi tão sério como agora, porque nunca, como agora, a realidade (o mundo a fingir), se tornou tão derrapante para a ficção. a aceitação, por parte dos que frequentam a literatura, das premissas e valores, do mundo a fingir, a ausência de uma poética espiritual, a procura de compensações financeiras ou de prestígio e relevância social, conduzirão, cada vez mais a algo parecido com a sua extinção.
quando digo que na minha poesia não há metáforas, quantos compreendem? e, no entanto, não é por falta de pistas, de poemas e textos explicativos. e não entendem porque não conseguem desligar-se do mundo a fingir. mas o que chamam metáforas (e as outras “figuras de estilo”) são um produto desse mundo a fingir. um poema não é escrito em tal mundo, quando muito é trazido para ele. e é nessa transacção que o mundo a fingir se apropria do poema para o trair. e esta é, igualmente, uma das censuras que faço à poesia contemporânea, ela mesma escrita no mundo a fingir e, por isso, indistinta e colaboracionista.
os poetas irão rarear cada vez mais e virá um dia que os poetas, dignos desse nome, serão obrigados a esconder-se. tornar-se-ão uma espécie de eremitas urbanos, resistentes a um mundo iníquo e falso.
já por várias vezes escrevi que as pessoas da “cultura”, da literatura (e em particular da poesia) não são melhores que as outras. frequentemente dá-se até o caso inverso. e, no entanto, esperar-se-ia que as pessoas da “cultura”, da literatura, da poesia, fossem pessoas melhores, pessoas “mais sensíveis” (etecetera). vivemos numa tragédia, que é a do fingimento.
um dia haverei de vos falar da COMPAIXÃO
os anjos não têm asas
mas o meu coração tem duas asas
poema
as minhas avós e a minha tia-avó/
viveram num tempo que tudo lhes pediu//
e às vezes tinham dias/
mas era à noite/
que tudo se repetia//
como se fosse uma sorte/
uma vingança uma maldição/
ou então uma espécie/
de coisa muito/
forte/
que acontecia