a casa de
haver pássaros
há quem tenha tido uma infância cheia de livros e outros exemplos
literários. a minha infância passei-a entre árvores e muros, e outras vezes na
aldeia de onde a minha família veio, também ela cheia de árvores, muros e casas
desmoronadas. e eu atravessava os dias a correr. para dizer a verdade, a minha
infância passei-a quase toda a correr, que ainda hoje não parei. tantas vezes
que a única coisa que levava comigo era a imaginação e uma espécie de coisa tão
redonda de não se ver. quase toda a gente leu obras literárias importantes, que
pode referir em qualquer lugar sem se envergonhar. eu não me envergonho de
confessar que preferi sempre os livros de “cow-boys”. isso, ou subir aos pontos
mais altos das árvores. em nossa casa não havia biblioteca. o que havia era as estórias
lá da terra, que eram um assunto de família, mais ou menos secreto. muita gente
importante teve pais que foram importantes para muita outra gente. em
contrapartida, os meus pais só foram importantes para mim e, creio, para o meu
irmão. a minha mãe tinha um desgosto tão grande, que era o de ter saído da sua
terra. o meu pai era habitado por uma ferida com o mesmo nome. eu cresci a ver
estas feridas, que mais tarde se tornaram também minhas. há quem chegue a
adulto e saiba o que é perder pais e amigos. eu sempre senti o que seria perder
pais e amigos: muito cedo conheci os seus sinais. muita gente visita lugares e
distâncias. eu sempre soube que é aqui o infinito. e que cada um caminha no seu
regresso. as estradas por onde caminho não se dirigem a lugares importantes. em
rigor, todas se dirigem para uma casa. a casa de haver pássaros. compreendam
que nem sempre é fácil falar disto. é que também não consigo compreender o que
me aconteceu naquele dia