domingo, 15 de setembro de 2024

 

a casa de haver pássaros

 

 

 

há quem tenha tido uma infância cheia de livros e outros exemplos literários. a minha infância passei-a entre árvores e muros, e outras vezes na aldeia de onde a minha família veio, também ela cheia de árvores, muros e casas desmoronadas. e eu atravessava os dias a correr. para dizer a verdade, a minha infância passei-a quase toda a correr, que ainda hoje não parei. tantas vezes que a única coisa que levava comigo era a imaginação e uma espécie de coisa tão redonda de não se ver. quase toda a gente leu obras literárias importantes, que pode referir em qualquer lugar sem se envergonhar. eu não me envergonho de confessar que preferi sempre os livros de “cow-boys”. isso, ou subir aos pontos mais altos das árvores. em nossa casa não havia biblioteca. o que havia era as estórias lá da terra, que eram um assunto de família, mais ou menos secreto. muita gente importante teve pais que foram importantes para muita outra gente. em contrapartida, os meus pais só foram importantes para mim e, creio, para o meu irmão. a minha mãe tinha um desgosto tão grande, que era o de ter saído da sua terra. o meu pai era habitado por uma ferida com o mesmo nome. eu cresci a ver estas feridas, que mais tarde se tornaram também minhas. há quem chegue a adulto e saiba o que é perder pais e amigos. eu sempre senti o que seria perder pais e amigos: muito cedo conheci os seus sinais. muita gente visita lugares e distâncias. eu sempre soube que é aqui o infinito. e que cada um caminha no seu regresso. as estradas por onde caminho não se dirigem a lugares importantes. em rigor, todas se dirigem para uma casa. a casa de haver pássaros. compreendam que nem sempre é fácil falar disto. é que também não consigo compreender o que me aconteceu naquele dia