segunda-feira, 30 de setembro de 2024

 


todo o amor fosse

uma maneira de saber

 

de chegar a um lugar

qualquer

e daí partir

sem nunca chegar

 

e fosse ainda

uma coisa de se ver

 

como as laranjas

os pássaros os gatos

 

ser tudo

e nunca ser demais

 


o poeta não busca posteridade. ele aprendeu que essa é uma palavra sem fundo

 

o poeta não busca prestígio. ele sabe que tal palavra pesa muito e cega

 

o poeta não escreve para que um leitor o leia. poucos serão os que, realmente, hão de lê-lo

 

o poeta não tem motivos úteis para escrever. ele desconhece por que escreve

 

o poeta não escreve para que outros se sintam alegres ou tristes. ele revela

 

o poeta não apregoa verdades. ele torna-se a sua verdade

 

o poeta sabe que nenhum poema é escrito com palavras

 

o poeta nunca há de estar onde o procuram

 

o poeta não morre uma vez. morre as vezes necessárias

 

o poeta escreve contigo. embora ainda não saibas, tu és Deus


 


qualquer gesto

palavra ou nome

 

a dor

que te abriu as feridas

com que saudaste

os amigos ou os estranhos

 

a chuva

que te escapou

por entre as mãos

 

o dia cego

e a noite aberta

 

a cruz

que de entre todas

era a tua

 

ajoelha-te

companheiro

 

qualquer porta

serve


 

queima esta terra

para que ela não

arda mais

 

e nenhum homem

faça mal a outro homem

 


e assim as suas

mãos caiam

 

se abra

o seu coração

 

e nos seus pés

não comecem estradas

 

mas apenas

mais desertos


 


aqueles que seguem

outras estradas

 

não são diferentes

de ti

 

são apenas mãos

que se afastam

 

também

elas procuram

os desertos

 


como plantares uma árvore

sem borda d’água

 

e sem ajuda de metáforas

 

plantas primeiro

um céu com nuvens

 

providencia que chova

um rio ou dois

 

e depois junta-lhe

um azul com muito

sol

 

pássaros

muitos pássaros

 

bichos insectos

e terra sem chão

pois as árvores gostam

de voar

 

de seguida aguarda

 

a árvore começa

a crescer por cima

domingo, 29 de setembro de 2024

 


e o poeta disse

 

toma-me nesta água

e dá-me de beber

ao mundo

 


o instante é breve

 

as casas parecem

silenciosas e desertas

 

não há rumores

nem vento

 

os animais olham

e as sombras

não se movem

 

um pássaro

atravessa a aldeia


 


196

 

hoje vim cantar

e não cantei

 

foste tu a

cantar

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

 


a gente

ama devagar

e sem porquê

 

alguém distante

que lhe traz uma flor

 

alguém que se vai

sem quebrar

o horizonte

 

talvez

nada mais

que um nome

 

e ainda assim

 

um aperto tão forte

onde o coração

bate

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

 


                                  /para maria/


perdoa-me se não fui

quem esperavas

 

quem esperavas

não veio

 

nunca chegou

a abrir a tua porta

 

nunca tocou os teus olhos

numa das suas mãos

e disse

 

vim de tão longe

que já não recordo

de onde vim

 

este sou eu

 

culpado de tudo

o que não te deu


 


perguntaram-me se já não escrevo do charco, se já não há a rã nos meus poemas. que agora há Deus a mais. então? então não percebem que é do charco que escrevo, e que a rã sou eu, um dos muitos nomes que a rosa tem? que tantos são os nomes do mundo

 


                         /sobre uma fotografia de lídia bacelar/

193

 

para ver-te

hei de cegar

 

para olhar

te abraço mais

longe

 

amplio-me

 

faço um retrato

da tua ausên

cia

 


192

 

aquele que vai

em silêncio

 

caminha numa

solidão sem nome

 

escuta-o

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 


191

 

por todo o lado

 

na chuva no ar e nos

charcos

 

nos casebres pobres

e abandonados

 

nas árvores que

nos olham de passagem

 

e naqueles caminhos onde

já ninguém passa

 

aleluia outono

 

que dei o teu nome

ao que vejo nos

olhos

 

às mãos envelhecidas

por olhar-te tanto

 

aleluia outono

 


vem cá

 

está na hora de rezares

e repetires comigo

 

que nada me contenha

nesta vida

 

nem sol nem trabalho

nem descanso

 

e de tudo

eu seja o lugar

onde tudo me conforta

 

e para que toda a sombra

seja luz

 

movo-me e caminho

em silêncio

 


ó mestre das abelhas

 

conhecedor das feridas

que as duas mãos trazem

 

feitor das plantas aromáticas

e das cores e outros

tons subtis

 

que ontem

desceste da macieira

a cantar de pássaro

 

e voas que não voas

onde nada se move

 

é de ti que falo

aos meus amigos

 

para que te vejam

para que te ouçam

 

para que te sigam

em silêncio

 

 


187

quando o meu pai
morreu
desabou no seu
nome
e ouvi como tudo
se partiu
o cinto as calças
os sapatos as mãos
e até uma lágrima
muito antiga que
trazia no coração
disseram-me que é
como as estrelas
ao colidir numa
rosa
ou então
numa casa
muito inclinada

 


ó mãe

que estás no céu

 

naquele lado

que ninguém vê

 

reza por nós

as palavras do azeite

sobre a água

 

e canta comigo

mãe

 

dança comigo

pai

 

a festa prometida

ainda não começou

 

um anjo aqui

um anjo ali

 

e a rã tudo vê

do nenúfar

 

é sabido

 

quem chegar primeiro

joga à cabra cega

terça-feira, 24 de setembro de 2024

 


tenho amigos

 

às vezes

fazemos planos

mas não queremos

mudar o mundo

 

já são demasiados

a fazê-lo

 

há dias

em que saímos cedo

a olhar os pássaros

 

outras vezes

sento-me com eles

à beira das estradas

 

e juntos vemos passar

os caminhos

 


vai borboleta

 

vai dizer

que voaste

deste poema

 

encontra um lugar

muito alto

 

um caule

uma haste

um pecíolo

 

uma gota

que seja a parte

mais leve

da água

 

abraça no coração

o mundo

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

 


acabaram-se as visitas

 

nestas casas não pousam

pássaros

 

onde havia uma eira

já não se contam estórias

 

a rã não se deixa apanhar

e foge de nós

 

a fonte

e depois os muros

e uma árvore muito grande

sucumbiram todos

com as crianças

 

foi-se a sombra

que as seguia

 

não há mais visitas

 


187

 

quando o meu pai

morreu

 

desabou no seu

nome

 

e ouvi como tudo

se partia

 

o cinto as calças

os sapatos as mãos

 

e até uma lágrima

muito antiga que

trazia no coração

 

disseram-me que é

como fazem as

estrelas

 

ao colidir dentro

de uma rosa

 

ou então

numa casa

muito inclinada

 


188

 

já perto do fim

acabou tudo

 

não chegámos

a ver todo o filme

 

a sala estava cheia

 

o êxito era grande

e obrigatório

 

gente de todo o

lado veio assistir

 

nós ficámos na plateia

mas havia os do balcão

e dos camarotes

 

o filme estava

sempre a tropeçar

 

e alguém o reiniciava

para as longas e

distantes filas

 

já perto do final

é quando acabou

 

não chegámos a

entendê-lo