sábado, 31 de agosto de 2024

 

138

 

moro numa casa

inclinada

 

às vezes vou à

janela e desenho um

sol

 

outras saio à rua

e ponho uma estrela lá

no cimo e então faz

 

se noite

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

 

136

 

deixarei para depois

as apresentações

 

meu nome é

homem azul e

 

sou

um desenho

 

137

 

já pensei enviar os meus poemas do homem azul a um crítico de poesia. mas ele dir-me-ia que nos poemas da literatura não se fala de um homem azul ou de um pássaro de papel. que são metáforas muito pobres e que ninguém as entende. seria talvez inútil explicar-lhe: o homem azul ou o pássaro de papel não são metáforas. metáforas são os da literatura

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

 

133


perguntaram

me como pode haver

tanta gente numa

folha de papel

 

perguntem ao

antónio nunes que

sabe de coisas quânticas

 

eu apenas faço os

desenhos

 

o homem azul

aqui

 

uma criança e um

balão ali

 

a casa inclinada e

atrás o sol

 

por vezes também

faço um rio

 

já os pássaros

 

aparecem quando

querem

 

129

 

no dia que

Deus chegou à

folha de papel os

 

cegos viram e

os outros cegaram

 

onde estavas

 

perguntou o

desenho do

homem

azul

 

estava na outra

página

 

o rui pascoal tem

montes de fotografias

 

eu só tenho

uma

 

aquela em que

tu não estás

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 

131

 

há dias Deus visitou

me e disse

 

já estás por pouco

 

esta é a borracha

com que irei

apagar

te

 

este e outros poemas podem ser ouvidos, cantados, no spotify (basta escrever, em buscar, o título "a crucificação segundo jesus"). os poemas são de carlos lopes pires, a música, voz e arranjos de joão lopes pires.

..............


pai

que estás no céu

 

dá-me a mão

que não tens

 

o coração

que não é outro

senão o meu

 

em breve irei cegar

nestes olhos

 

neste corpo

que nunca chegará

a ver-te


 

127

 

dorme pássaro de

papel

 

não chores

 

não chores que

sujas

 

a folha de

papel

 

122

 

além do pássaro

 

fiz uma árvore no

lado esquerdo

de onde se

vê um rio

 

eu estou na

casa muito torta à

esquerda

sou quem te acena da

janela quase inclinada

 

podes acenar

também

 

123

 

as palavras

criam tudo

 

até a ausência

 

e depois tu

perguntas

 

e Deus

 

Deus é

a ausência in

finita

terça-feira, 27 de agosto de 2024

 

124

 

agora dirão

 

o teu pássaro de

papel é uma metáfora

 

uma metáfora

 

abre os olhos

toupeira

 

125

 

se és tão poeta

 

por que não desenhas

Deus

 

e eu desenhei

 

um sol

 

o canto de uma

casa

 

um dedo

 

119

 

e então olharam o

pássaro de papel e

disseram

 

como é possível um

pássaro de papel

voar

 

o pássaro olhou e

sorriu

 

é que

também eles

eram de papel

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

 

111

 

como a presa que

perde o rastro

ao caçador

 

perdi eu

alguns amigos

 

soube-o ontem

ou talvez ainda hoje

 

a porta aberta e

hoje fechada

 

as flores crescem

e tu não

 

vem cá pássaro

 

hoje não

saio de casa

 

amanhã talvez

 

120

 

dei-te

um pássaro de

papel e tu deste-me

nada

 

voa pássaro de

papel

 

traz me o

seu coração

 

121

 

quando pensavam ter-me agarrado no charco, mais os meus animais, as azedas, os nenúfares e as margaridas, mudei-me para uma folha de papel. tentem apanhar-me agora...

 

118

 

desde há dias que

vivo num mundo de

papel

 

hoje vou falar do

pássaro

 

voa pássaro de

papel

 

leva sol onde

existam corações

 

113

 

este é o anjo a

que dei o teu nome

 

aquele sou eu

 

embora ninguém

passe nesta estrada

 

por ela vai o

anjo a voar

 

esta é a água que

dobrei para lhe

dar

 

116

 

não desistas

 

se for preciso

cresce junto a

uma árvore

 

sê a árvore

 

ou corta as tuas

raízes

 

pássaro

domingo, 25 de agosto de 2024

 

nos meus poemas não há figuras de estilo. o que há é coisas que são outra coisa. só que esta semântica não é um truque de semântica. é porque o mundo é sempre uma outra coisa. eu cresci a ver nas palavras o que elas são de outra coisa. há quem julgue que as palavras descrevem as coisas do mundo, mas eu vi na água que tudo se move noutra coisa, e assim as palavras são as coisas. e numa palavra cabe tudo, e tudo é uma coisa que se abre em muitas outras coisas,

e por isso quero dizer-te, creio que chegou a altura de dizer-te, de dar-te disto testemunho: todas as palavras são igualmente sinais de uma ética, que é o caminho que fazes para te tornares melhor. e não, não há qualquer castigo caso o não faças. e não há qualquer deus que te castigue. mais que tudo há a beleza de te tornares no rosto da própria coisa

 

sei que é difícil, mas aceita a desimportância e alcança-te. desimporta-te e aceita a beleza da rosa que canta. ela alimenta cada coisa de si própria. ela é o bem que todas as palavras querem dizer. e todavia nada te impõe. dou-te disto testemunho: o bem é a medida do amor no outro

 

               e  repara como tudo está ligado:

 

                o caminho do bem é a ética do poema, e o poema é a palavra que diz o mundo

 

 

para que vejas

deves cegar primeiro

 

para que ouças

tapa antes nos ouvidos

as duas mãos

 

recusa o iníquo

constrói a partir do bem

 

não caminhes

senão o que pode

ser caminhado no coração

 

não há

estradas fáceis

 

toca-me

para que seja pacífico

o meu caminho

 

toca-me

para que suporte de mim

o insuportável

 

toca-me

para que abdique

do que brilha em aparências

 

toca-me

neste lado do coração

em silêncio e luz

 

enche-me

de abundância

 

111

 

como a presa que

perde o rastro

ao caçador

 

perdi eu

alguns amigos

 

soube-o ontem

ou talvez ainda hoje

 

a porta aberta e

hoje fechada

 

as flores crescem

e tu não

 

vem cá pássaro

 

hoje não

saio de casa

 

amanhã talvez

 

os meus poemas

 

que não têm

literatura ou arte

 

são de tudo isso

estranhamentos

 

imagino o mesmo do

escaravelho