continuarei a dizer que a poesia é outra coisa. sobretudo, afasta-se tanto do chamado romance, que nem literatura pode ser. a poesia contemporânea, em geral, é literatura. e é literatura (ou com literatura, como às vezes também afirmo), por vários motivos. primeiro e antes de mais, porque se deixou seduzir pela lógica mercantilista, que inclui como valores centrais e acessórios o dinheiro, o prestígio, o reconhecimento. em seu redor, o mesmo sucedeu com a chamada crítica, o ensaio crítico/recensão.
a poesia com literatura tornou-se refém do novo conceito dos produtos culturais, e ao tornar-se refém, tornou-se igualmente medíocre, repetidora, dependente do gosto geral, que é como quem diz, dos académicos e outros literatos. os poetas tornaram-se arregimentados do sistema, mesmo quando não dão por isso.
à medida que o mundo humano se vai tornando mais e mais ficção e de narrativas alternativas, mais a literatura vai perdendo sentido, exactamente porque esse mundo (a fingir) se vai tornando mais e mais dominante e complexo. “a realidade” já substitui os romances há algum tempo. e no que era para serem diferentes e alternativos, também os poetas se tornaram colaboracionistas do total aborrecimento e falta de imaginação. a banalização tornou-se dominante. a chamada democracia liberal engoliu a literatura e a poesia, em particular.
ora, a poesia é outra coisa, visto ter a ver com a pergunta de Sócrates e esta, como é sabido, já foi formulada há mais de dois mil anos. e sem o ser, o poeta terá de ser cada vez mais o ermita, o místico, o pobre, aquele que regressa a casa, aquele faz o caminho do cego. para um poeta este caminho é o da salvação existencial. aquele que cega olha o mundo do lugar mais alto.
os anjos não têm asas
mas o meu coração tem duas asas
poema
as minhas avós e a minha tia-avó/
viveram num tempo que tudo lhes pediu//
e às vezes tinham dias/
mas era à noite/
que tudo se repetia//
como se fosse uma sorte/
uma vingança uma maldição/
ou então uma espécie/
de coisa muito/
forte/
que acontecia