sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

 


337

 

tão distante

do meu nome

 

senhor

 

tão distante

do teu

 

que numa haste levo

o meu coração

 

pois o meu coração

é a minha casa

 

e esta manhã acordei

numa cama de silêncio

 

esta manhã dobrei-me

no teu nome

 

esta manhã

caminhei sobre água

e nenhum outro caminho

me levou

 

o amor nunca

falha

 


335

 

Deus não veio

 

Deus não fez planos

para esta noite

 

Deus tinha outros

afazeres

 

como cuidar das flores

ou mover o horizonte

 

mas ouvi chover toda a tarde

na janela do meu quarto

 

vi a chuva miudinha

ao longe

 

vi-a chegar

ao longo do dia

 

Deus é que nunca vem

 

é como aquele

que ama

 

e nunca chegou

a partir



os meus olhos

não vêm


as minhas mãos

não tocam


então canto

e talvez tu me ouças



 


ó mestre

 

que nada sabes

dos animais

 

nem voo

nem sulco

nem da breve

canção na boca

 

e tudo moves

através das cores

e do prodígio da vida

 

tão profunda é

a tua ausência em nós

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

 


disseram-me

que nada no mundo

se faz sem ti

 

e perguntei

como quem sabe quase muito

 

nem o vento

 

e disseram-me

que és o vento

 

e perguntei duas vezes

 

e esta coisa que trago

 

e disseram-me

que és a coisa que trago

 

indistinta na rosa

e na laranja

 

ó mestre das abelhas

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

 


331

 

a eira do meu verão

só se parece com

uma eira

 

os vaga-lumes

fazem no chão

noites com estrelas

 

e os pássaros fazem ninhos

nas suas frestas

 

agora faço o poema

rimar com festas

 


332

 

a eira do meu quintal

é tão vasta

 

sobre o telhado

o antónio move as noites

com os olhos

 

encontrei-o a dormir

no coração

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

 


334

 

crucificado sejas

palhaço

 

na cama daquele

que não dormiu

 

ou deixa a boca aberta

para que cresçam ervas

nos olhos

 

daqueles que hoje

não comeram

 


ó mestre das abelhas

 

conhecedor das feridas

que as duas mãos trazem

 

feitor das plantas aromáticas

e das cores e outros

tons subtis

 

que ontem

desceste da macieira

a cantar de pássaro

 

e voas que não voas

onde nada se move

 

é de ti que falo

aos meus amigos

 

para que te vejam

para que te ouçam

 

para que te sigam

em silêncio

 


de onde vier o vento

é que tu virás

 

e virá contigo

o silêncio

 

e assim as árvores

as bétulas

 

os bichos

com as suas

tarefas e canções

 

as crianças

com os seus pais

e avós

 

todos no regresso

ao sol

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

 


179

 

a farsa instalou-se

na cidade

 

os ilusionistas

trouxeram as carroças

 

os vendedores de elixires

curam tudo e mais

alguma coisa

 

desde entorses

a desgostos de amor

 

vieram também os

ventríloquos e os locutores de

rádio mais os pivôs da

tv e os majores generais

 

a bola do costume

não esquecendo o orçamento

e os vendedores de

banha da cobra

 

os incêndios as cheias

e os poetas

 

ah e os poetas

indignados que estão

com tudo e mais alguma coisa

 

quero dizer

 

com nada

 

pedi ao sol

que alivie as tuas dores

 

tão longe está

o sol

eu sei

 

mas ao sol pedi

que alivie as tuas dores

 


e que venha a chuva

as nuvens e o frio

 

e que tudo cumpra

o seu lugar e tempo

 

disse o sol

 

e então

ao sol pedi

que leve as tuas dores


 


329

 

é um palhaço

como nós

 

às vezes sorri

 

e julga que a vida

é um fio estreito e longo

 

entre o palco

e a saída

domingo, 23 de fevereiro de 2025

 


houve um tempo

em que não envelhecia

a olhar-te

 

era cada dia

o prodígio de ser

onde tudo começava

 

e nada me prendia

 


como não havia luz

 

fui falar

ao vaga-lume

 

imagem de Deus

seu semelhante

 

e pedi-lhe

 

um lugar para ti

no mundo

sábado, 22 de fevereiro de 2025

 



                                     oração do caminho da água

outros te temem

e eu não


nem te lavo os pés

ou as mãos

 

não te obedeço

nem transgrido

 

outros te seguem

e eu não

 

que sou de um caminho

sem nome

 

de uma dor

em cuja ferida

fundei o meu reino

 

outros te buscam

e eu não

 


ontem envelheci

a olhar o teu retrato

 

mas nem sempre foi assim

 

antigamente

eram só as rosas

que ocupavam o lado

de dentro de uma jarra

 

e depois caíam para fora

e por toda a cómoda

 

e assim ficavam um tempo

e depois outro

 

que já não recordo

 


ele morreu sozinho

enquanto esperava

a morte

 

nenhum anjo

lhe contou a verdade

 

nenhum livro

lhe abriu uma porta

 

não encontrou um segredo

já revelado

 

e a sua alma agarrou-se

às coisas do quintal

 

e não flutuou

nem se afastou do limoeiro

 

era uma estrela

que se abria no coração

 

era a rosa

do costume

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

 


haverá sempre

uma mão a caminho

do teu olhar

 

alguém que te mostra

a chuva

e nela acende

uma rosa

 

que há de ser um sorriso

um abraço

um beijo

 

de manhã cedo

no mundo

 


no caminho dos cegos

muitos são os que também

não ouvem

 

visto de fora

parece uma procissão

 

mas por dentro

é onde todos vamos

 

uns engalanados a preceito

alguns a protesto

outros disciplinando

e ordenando

 

há ainda

alguns equivocados

e tantos encarecidamente

 

agradecidos

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

 


318

 

até que sejas muito pobre

não fales comigo

 

eu sou a abelha

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

 


326 (antónio gedeão)

 

nascemos noutro lugar

 

e depois

é que ficamos aqui

 

connosco vem ainda

um pouco de luz

 

mas quando

abrimos os olhos

e roubam-nos essa luz

 

então

movemos o corpo

e aprendemos a usar

as mãos

enquanto caminhamos

entre cegos

 

e aprendemos a cegar

de outra maneira

 

um dia alguém nos diz

que no mundo

quase tudo está errado

 

e que é preciso caminhar

noutro lado

 

é a fala do homem nascido


terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

 


161

 

desenho um sorriso

e colo-o na tua

boca

 

tu sorris

 

depois desenho

orelhas nariz

olhos

 

e tu cantas

 

agora faço um

coração nos

desenhos

todos

 

e é o mundo