existe a ideia, generalizada, creio, de que a “cultura”, a arte, a literatura, são elementos importantes na elevação das qualidades existenciais da humanidade. que as pessoas que frequentam a cultura, a arte, a literatura, se tornam ou são melhores. Isto é, mais empáticas, generosas, solidárias, misericordiosas. discordo, claro. se assim fosse, as pessoas cultas seriam praticantes do bem. se assim fosse, os artistas, os escritores, os poetas, seriam boas pessoas. mas não são. na verdade, são igualzinhas às outras: invejosas, vaidosas, intriguistas. não cabem no mundo tal o tamanho do seu narcisismo. são os poetas mais sensíveis? não são. não só os poetas não são pessoas melhores, como quem os lê o não é também.
há até quem diga que tal (a cultura, a arte…) tem que ver com liberdade. mas que liberdade? é que mesmo a propalada liberdade comum é um uso, quase exclusivo, das elites. porque liberdade implica poder e saber escolher. portanto, falamos da liberdade de fingir.
mas há outra espécie de liberdade, que envolve a consciência de existir na sua própria escolha. na busca de um sentido ético para o seu caminho, esse que decorre entre um início e um fim. e essa pode ser encontrada em muitos sítios, pois ela está presente em tudo, mesmo quando a não vemos. é o que dá transcendência a cada coisa do mundo. o que na nossa experiência do mundo poderemos chamar espiritualidade.
a cultura e a arte, em si mesmas, não nos libertam de nada. o que nos liberta é a consciência do bem. e este só pode ser encontrado na espiritualidade. nome com que meço o tamanho da minha existência no mundo, no universo, no cosmos.
eu não escrevo poemas para libertar quem quer que seja. talvez escreva para libertar a mim mesmo do fingimento deste mundo. talvez daqui decorra, para quem os lê, essa mesma experiência de libertação, que é espiritual. em qualquer momento da nossa vida podemos ser tocados por essa experiência. por vezes chamo-lhe “o toque de Deus”. mas, é claro, toda a gente sabe que não creio em religiões nem em igrejas. é que eu tenho um quarto de ouvir música, onde ele toca piano e eu rodopio e danço vestido de anjo
os anjos não têm asas
mas o meu coração tem duas asas
poema
as minhas avós e a minha tia-avó/
viveram num tempo que tudo lhes pediu//
e às vezes tinham dias/
mas era à noite/
que tudo se repetia//
como se fosse uma sorte/
uma vingança uma maldição/
ou então uma espécie/
de coisa muito/
forte/
que acontecia