quarta-feira, 31 de julho de 2024

 

75

 

todas as manhãs

há incêndios

 

o que não há

é um lugar onde

possas esconder-te

 

ou talvez haja

 

e ser-te-á exigido

que comas

a tua

 

própria culpa

 

tudo se faz

e desfaz

 

mas a verdade

não

 

ela existe sem lugar

ou nome

e resiste a todas

as palavras

 

alguns dizem

que não

 

mas que me importa

se eu sei que

mesmo nesses

 

é a verdade

que fala

terça-feira, 30 de julho de 2024

 72


van gogh morreu

muito antes de

saber quem era

 

uma coisa assim

acontece uma vez ou

outra

 

quase sempre

 

73

 

iluminai os

pássaros mas pouco

 

que a eles basta

voar

 

iluminai as

flores antes que

outro dia comece e

murchem

 

iluminai em

cada coisa o

verbo e nunca o

nome

 

diz-nos outra

vez

 

ide e comece

o mundo

 

era quando o sol

se punha

 

deixando

em nós abertas

todas as feridas

 

as nossas cicatrizes

nas brancas paredes

de cal

 

que então

arrancávamos

do coração a nossa voz

 

e cantávamos

 

70

 

não se vê a

formiga no carreiro

 

não é que seja

noite

 

não é que seja

muito longe

 

é só a formiga que

anda a monte

segunda-feira, 29 de julho de 2024

 

se aquele

que te dá a mão

é quem te empurrou

 

se aquele

que te aconselha

é o mesmo

que te mordeu os pés

 

se quem te pôs a mordaça

é quem te fala

 

se esses que defendem

o amor a Deus

acima do amor ao outro

 

atrás de si deixando

rastros de miséria

e sangue

domingo, 28 de julho de 2024

69

 

ao sábado não

se mata

 

também não

se viaja ou trabalha

 

e é dia para guardar

as bombas e fazer muitas

orações

 

foi Deus que

mandou dizer

sábado, 27 de julho de 2024

 

68

 

iluminai

a minha culpa

em cada dia e em

cada coisa que faça

 

dai-lhe uma cruz que

seja muito alta

e ela mereça

 

que nos meus caminhos

tudo foi cego de

se ver

 

67

 

iluminai

as sombras que

crescem à minha

volta

 

iluminai os meus

filhos

e neles brilhe a

compaixão

 

iluminai

também os meus

amigos

e dai a cada um

o dom da humildade

 

para que minha seja

toda a culpa

 

iluminai

a minha culpa

 

bonitas são as rosas

que não são colhidas

 

os barcos que não têm

destino e seguem caminhos

que não podem ver-se

 

as mãos de alguém

que te alcançam

e tocam

 

e no teu corpo

ficam tão quietas

 

até que partem

leves e desertas

 

em ti deixando

sinais ou marcas

 

de um desenho

 

que nenhum mapa

poderá saber

 

qualquer gesto

palavra ou nome

 

a dor

que te abriu as feridas

com que saudaste

os amigos ou os estranhos

 

a chuva

que te escapou

por entre as mãos

 

o dia cego

e a noite aberta

 

a cruz

que de entre todas

era a tua

 

ajoelha-te

companheiro

 

qualquer porta

serve

sexta-feira, 26 de julho de 2024

 

e se agora me desses

tudo o que me falta

no coração

 

as mãos abertas

em tudo o que recusei

 

o que amei

num dia de chuva

em que não vieste

 

aceitar que ser pobre

é trazer o mundo

no coração

 

e por isso

pouco ou nada me faltou

 

agora sei

 

ninguém sobe

à sua cruz

 

num dia quente

de verão

quinta-feira, 25 de julho de 2024

 

fernão de magalhães

descobriu galáxias

mas não foi ele

 

foste tu

quem soube

dos meus sinais

 

um mundo

e depois outro

 

e somados

esses mundos todos

 

me deste neles

as tuas mãos infinitas

 

foste tu

 

de entre todas

coitados

dos mentirosos


que nunca verão

a Deus


e nós

também não

quarta-feira, 24 de julho de 2024

 

toquei o teu rosto

em minhas mãos

 

toquei

o vaga-lume

 

toquei uma estrela

caída no chão

 

toquei a ferida

que tinhas nas mãos

 

passaram-se

muitos anos

terça-feira, 23 de julho de 2024

 

66

 

o velho gato da

guilhermina move-se tão

devagar

 

caminha sobre um

fio de algodão

 

foi a velhice que chegou

e cegou na parte de fora do

mundo

 

na parte de dentro é

que agora ele vê

tudo

 

Deus caminha sempre

devagar

 

um silêncio

tão grande no mundo

 

não obstante

os animais movem-se

 

eles sabem

segunda-feira, 22 de julho de 2024

 

65

 

amar

é morrer tão

devagar que nem se

nota

 

mão que era

nossa e um dia nos

deixou

 

pertença que

então é de alguém que

lentamente nos


levou

 

um dia perguntaram ao poeta clandestino para que servem os poemas. e ele respondeu:

 

para o mesmo que uma estrela ou o sol. as pessoas muito entendidas em literatura julgam que neles se expressam motivações e princípios. mas todos os poemas são evidência da ausência do seu criador. em cada poema o poeta salva-se de uma existência mesquinha. para que haveria de repetir-se? um poema é a ausência do poeta, tal como o mundo é a ausência de Deus.

 

e perguntaram-lhe, a terminar: e se um dia a poesia acabar?

 

já acabou. no mundo das aparências o que existe é o mundo frívolo da poesia com literatura. ainda bem que acabou.

 

mas tu não és poeta?

 

clandestino

 

para seres poeta

 

usa as palavras

como se falasses pássaro

 

vive entre os homens

como se fosses

um deles

 

e nunca eles saibam

que só vieste vê-los

 

dá nomes

à tua solidão

 

mas nenhum

que não seja teu

 

depois cresce

para dentro de ti

 

até que no mundo

já não existam sinais

da tua ausência

domingo, 21 de julho de 2024

 

se morri

num coração

que não era o meu

 

essa estrela

que nunca conheceu

o chão

 

porque a gente

ama e morre

 

para que um dia

nos conheçam